segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Gênios da raça: François Truffaut, a Nouvelle Vague e a saga de Antoine Doinel

A Nouvelle Vague ribombou através do mundo. A vanguarda iniciada na França por volta dos anos 1960 trouxe uma proposta de ruptura estética e temática com o cinema que vinha sendo produzido no Ocidente até então. Depois da II Grande Guerra Mundial, o cinema tornou-se uma indústria e os filmes de estúdio hollywoodianos dominavam as telas da época; havia muita burocracia para quem quisesse entrar e ascender numa carreira cinematográfica. A Nouvelle Vague adotou uma postura de contestação diante desse arranjo e deixou cravada indelevelmente sua marca na história da Sétima Arte. Feita por jovens realizadores, permaneceu em diálogo com a juventude de baby-boomers que experimentaria as indagações da contracultura e agitaria as ruas da capital francesa e de outras cidades do planeta no famigerado ano de 1968.


MARCOS INAUGURAIS
É difícil estabelecer um ponto exato para o início da Nouvelle Vague. A expressão, traduzida como Nova Onda, foi cunhada pela jornalista francesa Françoise Giroud em 1958. Tratava-se de um mero rótulo para identificar cineastas com menos de quarenta anos atuando no final da década de 1960. A revista Cahiers do Cinéma, fundada em 1951, foi um espaço responsável por reunir esses realizadores e divulgar suas observações sobre cinema. Em 1953, com o auxílio de seu mestre André Bazin, François Truffaut conseguiu adentrar no grupo e conheceu outros jovens colaboradores da Cahiers, tais como Jean-Luc Godard, Jacques Rivette e Claude Chabrol. 

Capa da revista Cahiers du Cinéma
O MOVIMENTO (?)
A definição da Nova Onda enquanto movimento encontra resistência. O próprio Truffaut, alguns anos mais tarde, em 1962, chegou a fazer brincadeira dizendo que o único traço em comum aos autores da Nouvelle Vague era praticar o bilhar elétrico. Ele pontuou: "Não nos cansávamos de dizer que a Nouvelle Vague não é um movimento, nem um grupo, é uma quantidade, é uma apelação coletiva inventada pela imprensa para agrupar cinquenta novos nomes que emergiram em dois anos em uma profissão em que não se aceitavam mais do que três ou quatro nomes todos os anos.". Mas é certo que esses cinquenta novos nomes de alguma forma traziam em seus filmes algumas características semelhantes que ajudavam a identificar um filme Nouvelle Vague. Câmera na mão, montagens transgressoras, roteiro livre e ligado a temas cotidianos e tabus, amoralismo e foco no psicológico dos personagens foram algumas das novidades trazidas pela leva de diretores. Os filmes eram realizados com pequenos orçamentos, filmagens nas ruas e atores pouco conhecidos, interpretando personagens marginais como criminosos, rebeldes e adúlteros.

Carteira do cineasta François Truffaut durante Cannes, 1957.
 O SALTO
Sem sombra de dúvidas, a transição de 1959 para a nova década consolidou definitivamente a Nouvelle Vague. Le Beau Serge (Nas Garras do Vício, 1958), longa dirigido por Claude Chabrol, foi tido como o primeiro da Nova Onda, mas foi Hiroshima Mon Amour (Hiroshima Meu Amor, 1959), de Alain Resnais, que alcançou um novo patamar, sendo hoje considerado um dos filmes mais importantes da história do cinema. No mesmo ano, Truffaut chegou com Les Quatre Cents Coups (Os Incompreendidos, 1959), filme que definitivamente alterou o panorama. Arrebatando público e crítica, Quatre Cents... lançou o feixe de reconhecimento que tornaria a Nouvelle Vague uma dos mais influentes vanguardas do cinema. O filme levou o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes e firmou entre Truffaut e o adolescente Jean-Pierre Léaud uma parceria duradoura. 

Capa do filme de 1959.


OS INCOMPREENDIDOS
François Truffaut, com cerca de 27 à época do lançamento do filme, viveu uma infância e adolescência um tanto conturbadas. Nascido na capital francesa, jamais conheceu seu pai biológico e foi rejeitado pela mãe. O menino foi criado pelos avós maternos até os 10 anos de idade, quando perdeu a avó e foi morar com a mãe, que estava casada com Roland Truffaut, que acabou registrando o garoto com o seu sobrenome. Foi o período mais difícil da juventude de Truffaut. Rechaçado tanto pelo pai adotivo quanto pela mãe, tornou-se em um mau aluno na escola e passou a cometer alguns atos de delinquência. Aos 14, abandonou a escola definitivamente e passou a viver de pequenos trabalhos e alguns furtos. Em texto de 1960 intitulado "Vida e paixão de Truffaut", o crítico, fundador da Cinemateca Brasileira e professor Paulo Emílio Sales Gomes escreve:
"Aos dezessete anos [Truffaut] encontrava-se num centro para menores delinquentes, depois de ter sido empregado de escritório e operário, e de ter participado ativamente de um movimento popular de cultura cinematográfica animados por Bazin. Foi este último quem tirou o jovem François do reformatório, ao mesmo tempo em que o iniciava no jornalismo cinematográfico. Três anos mais tarde, Bazin estava de novo às voltas com Truffaut, tratando de soltá-lo, desta vez, de uma prisão militar, onde se encontrava como desertor. Ao atingir a maioridade, François Truffaut era um nome temido na crítica cinematográfica francesa."

François Truffaut
Dessas memórias desastrosas, Truffaut arrancou inspiração para compor Les Quatre Cents Coups, seu primeiro longa-metragem e certamente o mais autobiográfico de sua carreira. O filme segue Antoine Doinel, um garoto de 14 anos que se vê enclausurado pelo autoritarismo na escola e arrasado pelo desprezo de sua mãe e de seu padrasto. Negligenciado, Antoine passa a faltar as aulas para frequentar cinemas ou brincar com os amigos, principalmente René. Com o passar do tempo, vivenciará algumas descobertas e cometerá pequenos delitos em busca de atenção até ser detido em um reformatório, levado pelos próprios pais.

Foto tirada nas filmagens de Les Quatre Cents Coups.
Dá para notar de cara a semelhança entre episódios da vida de Truffaut com o enredo de Quatre Cents... Por isso, Antoine Doinel é considerado o alter-ego do diretor. Personagem e criador compartilham um drama familiar, um mesmo sentimento de rebeldia e até mesmo as mesmas paixões: bem como Doinel no filme se encanta com a obra de Balzac, o escritor realista era um dos favoritos do cineasta. 
A carga pessoal depositada na constituição do protagonista faz de Antoine Doinel um personagem completo e complexo, repleto de nuances. Um personagem que salta para fora da tela e se aproxima do espectador, ao mesmo tempo que também o atrai para perto de si, para dentro de seu universo cinematográfico. Um personagem que merecia ser revisitado, uma vez que seu criador tinha muito a dizer.

JEAN-PIERRE LÉAUD
Com cerca de 14 anos, tal qual seu personagem, Jean-Pierre Léaud foi escolhido numa seleção, concorrendo com mais de 600 garotos. Sua capacidade de improvisar capturou a atenção do cineasta. Filho da atriz Jacqueline Pierreux e do ator e roteirista Pierre Léaud, Jean-Pierre teve uma infância bastante diferente daquela vivida pelo diretor. No entanto, isso não impediu que entregasse uma atuação sensível e surpreendente para alguém de sua idade, sem perder a desenvoltura e a naturalidade.


O sucesso do filme catapultou o nome de ambos pelo mundo. Truffaut tomou Léaud como aprendiz e assumiu o mesmo papel de mestre que André Bazin havia desempenhado em sua vida. Juntos, seguiram em muitos projetos de sucesso e a parceria abriu portas. Léaud esteve com outros diretores renomados, como Jean-Luc Gordard, Bernardo Bertolucci, Glauber Rocha e Cacá Diegues. Protagonizou também outros filmes de Truffaut, como a La Nuit Américaine (A Noite Americana, 1974). Mais que isso, existia um sentimento de sincera amizade e imenso respeito vindo dos dois lados.


Unidos pela arte, Léaud e Truffaut divergiram em certos momentos. Enquanto Truffaut parecia evitar o engajamento político (embora houvesse se posicionado contra a Guerra da Argélia), Jean-Pierre era um militante político. Em 1968 esteve no Brasil, no período da ditadura civil-militar, fazendo um discurso para centenas de estudantes da Universidade de Brasília, em Brasília. A cena aparece no documentário Barra 68 - Sem Perder a Ternura (2001) de Vladimir Carvalho. Essa opção por rumos distintos em hora nenhuma diminuiu a admiração mútua e a sintonia que havia entre o par.


A SAGA DE ANTOINE DOINEL
O personagem de Antoine Doinel ocupou mais outros três longas de Truffaut e um média metragem. Ao longo de vinte anos, Jean-Pierre Léaud deu vida - no sentido mais amplo que essa sentença batida pode ter - ao rebelde e deslocado Doinel, as suas aventuras e enrascadas. Os filmes seguintes assumiram um tom mais cômico sem, apesar disso, perder a sutileza ao abordar os dramas e dilemas de seus protagonistas. Dramas e dilemas por sua vez, simples - mulheres, memórias, indecisões - e densos em sua elaboração. Truffaut fala de questões absurdamente cotidianas sem banalizá-las e Léaud concede a elas a carga dramática que merecem, mantendo sempre a leveza e um toque amargamente bem-humorado. A forma como ator e diretor se doaram torna a identificação de quem assiste um fato incontornável. A história das desventuras de um órfão até a idade adulta não provoca piedade, não, nem se deixa cair em melodramas. É muito maior que isso. A saga de Doinel provoca no seu espectador profunda empatia, a sensação de compreensão e ternura, como se tivéssemos vivido cada situação ao lado de Antoine. 

Em ordem cronológica, todos os longas da saga de Antoine Doinel. 


Antoine Et Colette, média metragem protagonizado por Antoine Doinel.
Você pode ler a sinopse dos filmes clicando nessa lista aqui.
A trajetória de amadurecimento de Léaud se confunde com a de Doinel. Assistimos os dois envelhecerem, se apaixonarem e se desapaixonarem diante do público, num caminho onde um pouco do ator está em seu personagem, da mesma forma como o personagem parece estar entranhado no ator. É praticamente impossível distinguir. Isto certamente nos torna mais íntimos da história. Essa impossibilidade de dissociação fica marcante para nós e em nenhum momento representa uma limitação para Jean-Pierre. Na verdade, prova sua maestria ao encarnar o alter-ego de Truffaut. Nenhum outro poderia ter vestido a persona de Doinel tão bem.
 
Antoine Doinel no decorrer de duas décadas.
Infelizmente, Truffaut faleceu em 1984, vítima de um câncer no cérebro. Léaud tem hoje 72 anos e seu último filme, La mort de Louis XIV (A Morte de Luís XVI), foi lançado há pouco, em 2016. Passados mais de meio século desde o nascimento da Nouvelle Vague, o trabalho e dedicação do cineasta François Truffaut seguem a inspirar gerações de diretores, assim como a atuação de Jean-Pierre continua a ser lembrada e estudada por novos atores. E a saga de Antoine Doinel ainda detém o poder de impactar e enternecer cinéfilos de todas as partes. Truffaut e Léaud edificaram, juntos, não só um legado cinematográfico, como também uma amizade eternizada pela magia da arte.

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